quinta-feira, 19 de junho de 2008

Conversas em família

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Bissau, um mês qualquer entre Maio e Outubro. Choveu toda a manhã. Podia ouvir a chuva bater nas vidraças das janelas e até o murmúrio secreto das pessoas. E sentia o agradável odor do café que a minha Avó preparava todas as manhãs. E só hoje me dei conta de que todas estas pequenas coisas são coisas boas. Desejava chegar aos domingos só para ouvir o ruído do fogão a petróleo e sobretudo a minha Avó a conversar baixinho com o meu Avô. Conversavam acerca do correr dos dias e lembravam-se do tempo em que eram jovens em flor.
Daqueles dias exaltantes, dos bailaricos de rua e de salão. «Foram bons tempos, esses», acrescentava o avô. O meu Avô era um homem pequenino e de mãos bonitas, bem talhadas de resto, pese embora todo o trabalho que suportou durante a sua longa vida. Ainda mantinha uma voz fina, bem modulada. Usava um chapéu branco que, com o passar dos anos, se apresentava todo remendado com arame fino que ele, pachorrentamente, desfiava dos fios de electricidade. Ria muito e com frequência e recusava boleias. O pretexto era sempre o mesmo: «a melhor receita para envelhecer com dignidade é caminhar». E lá ia ele todo pomposo, rua abaixo. Também dizia, a propósito de viver muito (contava na altura cerca de 80anos), que chegara a essa idade porque «gostou muito de mulheres. Ainda gosto, claro. Gosto mas já não posso, se é que me faço entender» - o meu Avô teve muitos filhos e tem-nos visto partir, com dor. Quanto a bebidas, um cálice de whisky por semana, aos domingos, e de um só trago embora se mostre um perito no assunto. «Só se deve beber entre amigos e com amigos. Quando um homem bebe só, algo está mal, algo não vai bem dentro dele». E saiu-se com esta frase lapidar: «quem bebe só está a conviver com a morte que lhe mora na alma» … A minha Avó (que morreu com a respeitável idade de 86 anos) gostava muito do meu Avô. Gostava mesmo muito e dizia-lho sorrindo enlevada (ou embevecida?), não sei bem. E ele manifestava o seu contentamento afagando-lhe as mãos e beijando-a com suavidade na testa enrugada. «Quando a gente não gosta, não deve ocultar os sentimentos e muito menos as emoções». Escutava-os feliz e adormecia no seu colo como uma criança que quer saber coisas sobre as estrelas.
Contei-vos o que sei. Outras mãos escreverão um dia, como todos os outros pormenores, o que falta nesta história.

António Aly Silva
Jornalista
Imagem: pintura de António Aly Silva