segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Guiné-Bissau: A juventude pode ser uma prisão


FONTE: Público


Nos bairros de Bissau, jovens exibem um misto de desesperança e resignação que se consubstancia na palavra crioula “coitadeza”. Para muitos, a Europa, com Portugal à cabeça, é a saída.

Abrigam-se do sol numa figueira alta, frondosa. Uns sentam-se num tronco deitado na terra avermelhada. Outros em pneus velhos ou em cadeiras trazidas de casa. Podem ficar ali o dia inteiro. Lassana Massuba Sila, um rapaz alto, de olhos fundos, é que se lembrou de criar uma “bancada” no Bairro de Belém, periferia de Bissau. “Se levanto de manhã, só a noite que saio daqui para ir tomar ar.”

À sombra daquela árvore, param 34 jovens com um fogareiro, duas chaleiras, três pequenos copos. Vão fazendo um chá verde, adocicado, a que chamam warga. Alguns ainda estudam. Muitos não estudam nem trabalham, como Lassana. “Eu no ano passado concluí [o secundário]. Estou a esperar uma bolsa. Eu quero estudar engenharia informática, mas sabe a situação… Os carentes sempre ficam para trás.”

Tantas “bancadas” nos bairros em torno de Bissau. Há muito quem reduza estes grupos informais a jovens que “não querem pegar tesu”, isto é, que não querem trabalhar, esforçar-se. O sociólogo Miguel de Barros, que se tem dedicado ao estudo dos jovens e das suas formas de participação, vê um modo de expressar descontentamento com o estado do país, de protestar.

“Aqueles jovens não conseguem entrar no mercado de trabalho”, sublinha Barros. O Estado já não pode contratar, a indústria não existe, os serviços rareiam, as organizações não-governamentais empregam um número reduzido. “Escolhem o espaço mais vistoso da sua zona para mostrar a sua precariedade, projectar a sua condição de desesperançados, de vulneráveis.”

Há “bancadas” de assalto, “bancadas” de vigilância de bairro, “bancadas” que fazem rap, “bancadas” que se transformam em centros de debate antes e depois de cada acto eleitoral e “bancadas” que se organizam para recolher lixo, como esta, que o faz três vezes por ano. Em todas paira um misto de desesperança e resignação que se consubstancia na palavra crioula “coitadeza”.

Lassana tem cinco irmãos, três mais velhos do que ele, que já completou 22 anos. Só um trabalha a tempo inteiro. Esse irmão e o pai, que “costuma dar as suas voltas”, sustentam a família inteira. A mãe pede aos outros que não procurem uma “vida sem saída”, isto é, que não se enfiem no crime. Sentado naquele tronco, Lassana queixa-se do país: “Cada dia está pior. Nós, os jovens, é que pagamos por tudo.” Ficam presos à juventude, um estatuto de subalternidade.

Ser jovem na Guiné-Bissau não é igual a ter entre 18 e 35 anos. A juventude depende do género, da etnia, da condição económica. O período é tendencialmente curto para as raparigas, cedo tomadas pelo casamento e pela maternidade, e tendencialmente longo para os rapazes, que só dela saem através de rituais de iniciação e/ou assunção de responsabilidades. O antropólogo Henrik Vigh usa a expressão “moratória social” para designar este tempo, angustiante, marcado pela assimetria das relações sociais e pela falta de oportunidades para cumprir a trajectória que permite sair do estatuto de menoridade, alcançar os direitos e deveres da vida adulta.

Ali, na bancada “há muito puxa-puxa”. “Todos os dias é a mesma coisa”, ri-se Nézio Aniceto Rafael Pereira, o mais alto dos rapazes. Falam de desporto, política, educação, emprego. “Eles acham que a Europa é a solução para os problemas”, resume. Ir para a Europa é “sair do escuro”, isto é, dar o salto para um mundo com horizonte, ganhar independência, tornar-se adulto.

Num instante se percebe a revolta, contida, contra o modo como os mais velhos têm dirigido o país. Nézio abrevia o debate: “Quando uma pessoa está a tentar fazer algo de bom, o outro que não está lá a trabalhar começa a fazer a guerra. E isso não é bom. Sempre concluímos que isso não é bom. Quem merece trabalhar, que deixem trabalhar. Quem não merece, que fique em casa.”

Não é só a instabilidade político-militar, que se agravou desde a guerra civil de 1998-1999. É a fragilidade do Estado e da economia. O país depende da ajuda externa, quase só exporta castanha de caju, é incapaz de garantir serviços e infra-estruturas de nível básico – luz, água, saúde, educação.

“O futuro está muito ameaçado”, diagnostica o sociólogo Dautarin da Costa. A desvantagem começa a definir-se desde a mais tenra infância. “Pelo menos 20% das crianças em idade escolar não chegam a ir à escola. Das que vão, apenas 63% têm probabilidade de chegar ao 6º ano; 51% ao 9º ano; 46% ao 11º”, diz, citando o Relatório para a Situação da Educação na Guiné-Bissau.

Dautarin pode discursar horas sobre a fraca qualidade do ensino básico e secundário e a escassez de ensino técnico-profissional e superior. É com essa espécie de “amputação” que os jovens têm de enfrentar os desafios da integração na Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, com livre circulação de pessoas e bens. Ou a vida em países como Portugal, Espanha, França, Luxemburgo ou Reino Unido – no ano passado, só os romenos (2455) ultrapassaram os guineenses (1239) em matéria de entradas em Portugal, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Nem todos se limitam a esperar por uma bolsa ou um familiar que lhes sirva de âncora. Proliferam organizações juvenis. Há muito quem as encare como um trampolim para a vida profissional, observa Miguel de Barros. Acreditam que os pode ajudar a aceder a uma bolsa de estudo no estrangeiro ou a ganhar uma projecção social capaz de abrir portas no mercado de trabalho. Nézio, agora com 32 anos, insistiu nesse caminho.

Entrou na escola aos oito anos, o rapaz alto, de cabelo rente. Antes, não havia “condição para pagamento [de matrícula] e material didáctico, alimentação até”. O pai não queria saber dele e a mãe vendia comida na rua. Com a ajuda de tios completou o 11º ano. Entrou numa associação juvenil e aproximou-se de uma grande ONG ligada à preservação do ambiente e à promoção da cidadania. Por uns trocados, foi cumprindo pequenas tarefas aqui e ali. Três anos nessa espera. Aproveitou uma oportunidade para fazer uma breve formação em informática. Esperou outro ano. Fez um curso profissional de contabilidade. Esperou outros três anos, até, por fim, ser seleccionado por uma ONG para um projecto. “Estou à espera que me chamem”.

Conta ganhar o suficiente para pagar um quarto, assegurar “um tiro kada dia”, isto é, uma refeição por dia, o almoço, e ajudar a mãe, que uma trombose atirou para uma cama. Não se sente diferente. Tudo à volta dele é luta pela sobrevivência. Mais de dois terços da população vivem com menos de dois dólares por dia – um terço com menos de um dólar. E os jovens são os mais afectados pela pobreza (80% dos pobres têm entre 15 e 35 anos). Impera a “dubria”, isto é, o “desenrascanço”.

Com latas de café, leite ou papa, jovens fazem brinquedos; com latas de alumínio, panelas; com linhas de coser roupa, depilação. Tudo se vende nas ruas e becos, nas rotundas, cruzamentos e entroncamentos, nas varandas e nos quintais da cidade e dos bairros à sua volta. Saldo para telemóvel, recarga, sacos de água, copos de café instantâneo, meias, boxers…. O importante é arranjar uns francos CFA para pagar a escola ou garantir o “tiro” de cada dia.

Quase não se vê raparigas sentadas em “bancadas” ou a liderar associações juvenis. Os homens estão mais presentes no espaço público e as mulheres mais associadas ao espaço privado, mas basta andar pelas ruas poeirentas de Bissau para as ver vender temperos caseiros, caldos industriais, pequenas porções de amendoins crus, sacos de castanha de caju, frutas avulso, sapatos usados, tecidos de cores garridas, galinhas vivas, peixes fumados, peixes frescos...

Laida Có trabalha de segunda a sábado no labiríntico mercado de Bandim, o maior de Bissau. Desde os 15 anos, ajuda a mãe a vender peixe. Acorda por volta das 7h30. Cedo atracam os barcos velhos e coloridos com barbo, barracuda, corvina, linguado, perca, peixe-gato, peixe-espada, arenque, sável. Fica de pé das 9h às 13h, a regar o peixe disposto numa banca inclinada. “Às vezes, quando estou na feira, há jovens e até adultos que passam ao pé de mim e ficam a discutir: ‘será que é ela?’, ‘não, não é!’. Muitos não acreditam que é a MC Leidy que está a vender peixe.”

MC Leidy é o seu nome artístico. No seu papel de rapper, a rapariga, de 22 anos, aconselha: “Para um jovem ser bom exemplo ele tem que seguir um caminho que o vai recompensar amanhã. No mundo de hoje, as pessoas devem escolher um caminho e segui-lo. Esse caminho deve ser um que não faz cair.”

Não se lembra de não trabalhar. A irmã mais velha foi criada por familiares. Enquanto a mais nova era muito pequena, caía-lhe a lida toda em cima. “Varria, limpava, acartava água, cozinhava, lavava a loiça, depois tinha que me preparar para ir às aulas.” Os dois rapazes mais velhos, não tinham tais encargos. “Às vezes o mais velho ia ao mercado e trazia o mafé [carne ou peixe], mas do resto nada.”

Sai para o mercado, volta, vai para as aulas no Centro Cultural Português, e vê rapazes sentados na bancada do Bairro Sector 7. Pensa que devem ser ‘filhos de boas mães’, ou seja, que têm quem os sustente. “Se estás sentado é porque tens quem te dê; se não, vais ter que te levantar e te sacrificar para conseguir nem que seja 25 francos CFA. Como eu não tenho quem me dê, para não entrar na ‘má vida´, luto”, diz. E lutar é, também, enfiar umas calças largas e um boné e cantar.

O rap popularizou-se como instrumento de contestação dos poderes políticos e militares e de denúncia da situação política, económica e social, sobretudo em Bissau. E isso, no entender de Miguel de Barros, é “muito importante num contexto onde os protestos eram controlados e de baixa intensidade”. É, explica, um fenómeno indissociável de um outro: o das rádios comunitárias.

Tudo começou ainda antes da guerra civil, com o programa semanal “rap pa raperus”, na rádio privada “Pindjiguiti”. A estação foi saqueada durante o conflito. Com a liberdade de imprensa enfraquecida, por iniciativa da Rede Nacional das Associações Juvenis nasceu a Rádio Comunitária Jovem. É nela que é emitido o programa Ondas Culturais, de segunda a sexta, das 14h às 16h.

Com voz grave, o radialista Mayerson Tavares Arsola Indi, de 33 anos, apresenta jovens artistas da Guiné-Bissau, entrevista-os em directo, abre a linha telefónica para que os ouvintes cheguem até eles. O programa chegou a ter às sextas-feiras, entre 2011 e 2013, um concurso de “Freestyle” dedicado à descoberta de novos talentos. O vencedor ganhava uma gravação em estúdio.

Braima Darame, o director da rádio, gosta de dar voz a jovens que, apesar de toda a adversidade, revelam criatividade. “Através da rádio, tentamos incentivar esses jovens, que não se limitam a esperar uma oportunidade para ir para Europa, e, ao mesmo tempo, consciencializar os outros. Estes podem servir de exemplo, podem mostrar que mesmo aqui se pode fazer algo.”

É preciso muita “dubria” para manter este “palco” a funcionar. Dezassete jovens afligem-se. As operadoras móveis, os grandes anunciantes, trocam serviços por publicidade. Precisavam de um patrocinador que pudesse garantir as deslocações de repórteres e animadores. “Muitas vezes ficamos com as mãos atadas. Ligo a alguém que tem de substituir o companheiro que está a trabalhar e esse alguém diz: quero ir, estou pronto, mas não tenho dinheiro para pagar o táxi.”

Braima é colaborador da Deutsche Welle, rádio internacional alemã com alguma programação em português, e já perdeu a conta às vezes que teve de tirar dinheiro do seu bolso para auxiliar a Rádio Jovem. Não que tenha muito para dar. Ele e um irmão é que sustentam a casa da família, morada de 12 pessoas. “Continuámos essa vida sem nada…” Já teve oportunidade de ir para fora, mas recusou. Tem 28 anos e está ali há oito. “Assumi esse projecto: um grupo de jovens a tentar mudar o seu país em regime de voluntariado.” Quem disse que ninguém acredita na Guiné-Bissau?